Louvada seja a liberdade de criação!

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Por Janaina Iszlaji

 

Ortega y Gasset, em 1924, afirmou que a Arte Nova de seu tempo era impopular. Passados quase um século, o que dizer da Arte Nova de nosso tempo? Em 2008, ainda na faculdade, cometi a imprudência de me inscrever em um Seminário de Arte Contemporânea. O evento reunia Intelectuais e Artistas de renome internacional e pretendia debater a Arte Nova de nosso tempo. Durante alguns dias, eu fui agraciada com a exibição, em vídeo, de performances notáveis. Pouparei o leitor de descrevê-las, mas destaco, apenas em caráter ilustrativo, a performance de um rapaz que, no auge de sua inspiração, arrojava em frente à câmera, digo, botava os bofes para fora mesmo. A grande obra resumia-se a isso. Espantoso? Não. Talvez só para mim. Nossa Arte Nova era uma Nova Arte! Não era mais, meramente impopular, ela ultrapassara o limite do natural, do transcendental e alcançava o puramente  banal.

Após cinco dias de experiências estéticas torturantes, uma ideia fixa dominou meus pensamentos: expulsem-nos da República!!! – pensava, enquanto esperava o antigo Shopping Sp. Market na turbulenta estação Conceição. Baixava em mim o espírito censor de Platão. Afinal, como não desejar, ainda que secretamente, colocar um limite à toda desordem provocado pela Nova Arte? Seriam esses limites tão ruins? O tal Seminário deixava seu legado: deslocava o centro das minhas preocupações do campo da estética para o campo da ética.

Para tratarmos dessa questão, comecemos por definir a noção de limite. Ora, limite é um marco final, um termo – ele que determina o começo e o fim do espaço e do tempo. Ele é uma linha divisória que separa o meu ser do seu (linha que divide o que é meu, daquilo que é seu por direito). E visto por esse lado, limite é também liberdade! Mas, então, por que não impor certos “limites”? Por que não dar aquele “freio de arrumação” e limitar ou proibir a divulgação de certas obras “inconvenientes”? Ah… não gostou da palavra? Eis o X da questão. Quem dará esse freio? Eu, você ou um terceiro? E quais serão os critérios? Claro que em uma sociedade democrática, esse freio será dado pelo governo. E aí, nos cabe a pergunta: deveria o governo estabelecer limites à liberdade de criação do artista?

Em Sobre a liberdade, John Stuart Mill nos apresenta bons argumentos contra a imposição de limites à liberdade de opinião. Seus apontamentos me parecem essenciais para pensar a liberdade de criação. Ele começa alegando que uma opinião verdadeira, quando silenciada, coloca o governo em uma posição de infalibilidade – atitude  totalmente equivocada. Por outro lado, quando uma opinião falsa é silenciada e, dificilmente ela será inteiramente falsa, a impossibilidade de confrontá-la com outras opiniões, impede que distingamos o que nela é verdadeiro do que é falso – atitude igualmente equivocada. E ainda explica que a opinião majoritária, ao eliminar as outras opiniões, tende a perder força, pois seus fundamentos deixam de ser debatidos, tornando-se estéreis. Para Mill : “ O grande mal não é o conflito violento entre partes da verdade, mas sim a silenciosa eliminação de metade dela;”[1].

O artista, embora não tenha obrigações com a verdade, pois ocupa-se da criação de uma obra a partir de sua imaginação, acaba por transparecer, muitas vezes, suas opiniões através dessas criações. Portanto, quando elas são censuradas, o artista é impedido de compartilhar sua visão particular do mundo, seja ela mais próxima da verdade ou não. E se o artista perde com a censura, a sociedade perde ainda mais (uma vez privada do acesso a opiniões diferentes). Consciente da importância de se preservar as liberdades de opinião, Mill defende que o indivíduo não seja molestado, ao menos que suas opiniões possam prejudicar a terceiros, ainda que sua forma de expressão seja violenta ou ofensiva.

Esse último ponto é extremamente importante. Assim como eu fiquei perplexa com a banalidade da performance da qual falamos no começo do artigo, muitos se indignam com as violências ou blasfêmias presentes em algumas obras artísticas. Nos últimos anos no Brasil, nós acompanhamos alguns casos bem polêmicos; o caso da peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, da diretora Natalia Mallo, a performance de degolação do Papa, do grupo Oficina e a performance “La Bête” de Wagner Schwartz. Muitas pessoas não entendem os motivos de tanta violência e agressividade. E é até razoável que se coloquem algumas questões como: por que tantos ataques a nossa fé? Devemos tolerar isso?

Segundo Mill, sim. Nesse ponto, concordamos com ele.  Mas, vejamos: se impor limites à liberdade de criação nos parece contraproducente, como lidar com essa indignação? Ela também nos parece digna de ser expressa e ouvida. Eis o ponto! Primeiramente, devemos encarar o fato de que a Arte Nova, assim como a arte de outros tempos, pode ofender ou nos chocar. Aprendamos então com o passado.  Façamos manifestos ou manifestações. Escrevamos críticas e livros, mas não tentemos calar o que nunca, de fato, poderemos calar. Combatamos a expressão que não agrada, com mais doses de liberdade. Hoje, infelizmente, estamos longe de tal consciência. Somos nós os próprios censores. Mostramos nossa incapacidade de conviver e dialogar quando destruímos a reputação de outros, cancelamos amigos e inimigos, jogamos bombas em produtoras ou imploramos por um projetos de lei – destinado a “melhorar o ambiente de debate”. Tudo em nome da liberdade, é claro!

Não meus caros leitores, não é a lei que me preocupa – se é que virá uma lei -, nem tão pouco, os ímpetos reacionários do nosso malhado Secretário da Cultura. O que me preocupa é o clima que precede a lei. Procuramos desesperadamente um fato, uma desculpa, as fakenews de ocasião. O motivo não importa. Queremos calar a todos, ou, pelo menos, aqueles que discordam de nós. Estamos cansados de gritar, mas sequer paramos para ouvir. Esses comportamentos escondem um medo particular: o medo do debate real. Isso porque o debate sincero nos abre ao desconhecido. Ele questiona nossas certezas, nossos dogmas, enfim, nossos valores. Somente quando estamos abertos à todas as possibilidade de mudança, algo vivo pode surgir. E, talvez, o medo de ruir ou de mudar seja, atualmente, um dos motivos de nossa apática produção cultural. Certamente Bocage não teria criado o seu belo XLIX soneto (Sentimento de contrição, e arrependimento da vida passada), se não fosse sua completa abertura para ruir e se converter.

Em síntese, o limite da liberdade deve ser dado pela própria liberdade. A grande obra de arte nasce do ato livre e transgressor do artista. O desejo de criar, falar e produzir será sempre soberano. E essa liberdade – louvada seja -, nos compromete com o outro. Nós dignificamos o outro quando o ouvimos, quando contemplamos suas obras que não nos agradam, quando tentamos entender o que parece incompreensível. Um mundo livre, pressupõe suportar o abjeto e até o que nos parece insuportável. E isso é tolerância ou santidade!

Mas, então, o governo não deve impor nenhum limite à criação artística? Não, não deve, ao menos que prejudique a terceiros. Por outro lado, todo artista, cedo ou tarde, se confrontará com uma questão ética fundamental: deveria o poeta, por ele mesmo, impor limites a sua liberdade de criação? A resposta à essa pergunta é individual. O artista será responsável por suas escolhas e prestará contas diante da plateia  – nossa suprema e melhor instância julgadora na terra -, mas prestará contas igualmente diante da História e diante de Deus. Portanto, o único freio à liberdade será a responsabilidade, ou melhor, a consciência da importância da arte e da responsabilidade dos artistas. Só essa consciência, acredito, pode fomentar a diversidade, sem uma excessiva agressividade. E que assim, seja.

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Janaina Iszlaji é professora de teatro e Mestre pela Universidade de Estrasburgo. Especializada em tragédia grega.

 

Referências Bibliográficas

[1] Mill, John Stuart. Sobre a Liberdade. Trad. Denise Bottmann. Porto Alegre: l&PM pocket, 2015, p. 81.

 

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