Ilusões perdidas

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Por Diogo Chiuso

No romance de Simone de Beauvoir, “O sangue dos outros”, Jean é um burguês que nasceu burguês e que até mesmo o seu repúdio à burguesia está impregnado da mentalidade burguesa. Ele ostenta a ilusão de um dia ser operário, buscando, assim, um sentido para a sua vida absurda. Outra personagem joga na sua cara que sempre haverá um abismo entre escolher ser algo e realmente sê-lo: um operário nasce operário, está condenado à sua trágica condição, ao passo que Jean, o pequeno-burguês, tem a liberdade de escolha. Mas Jean crê ser possível moldar a realidade e escolher um novo destino. Carrega a culpa por existir, e todos os remorsos por acreditar que suas ações só prejudicam o próximo. O mundo, portanto, é um campo de batalhas, onde se admite alguns poucos momentos de trégua quando mentimos, quando somos hipócritas e lisonjeiros e buscamos refúgio nas ilusões.

A revolta é o espírito da negação, dizia Camus. E o homem é a única criatura que se recusa a ser o que é. Jean, o pequeno-burguês de Simone de Beauvoir, renega a sua história para tornar-se um proletário. Ele reflete sobre as injustiças do mundo, mas não faz nada para combatê-las. Talvez hoje, na época do self-made man, teria um blog, um canal no Youtube e passaria às tardes repreendendo os parentes e amigos nas redes sociais com hashtags progressistas – ou conservadoras, não importa, porque o homem destituído de sentido é um homem banal que busca elevar-se projetando um futuro abstrato para a própria vida. Mas não passa de uma ilusão, afinal, toda realidade implica um limite, como dizia Simone Weil. Mas o cidadão dos tempos modernos é “soberano e senhor do seu destino”, aconselha-nos a outra Simone.** O homem é livre para desejar ser o que quiser, mesmo que, na realidade, seja uma tarefa irrealizável. Mas se a realidade é insensível, basta revogá-la. Nada mais justo!

Então, sem os limites impostos por essa tal realidade, já podemos projetar uma persona ideal e abrir o nosso próprio processo de beatificação. Eticamente absolvidos e purificados com alimentos orgânicos, já é possível decidir o destino da humanidade. Os códigos morais definem-se a partir do comprometimento com um ideal que está em constante mudança. Em si mesma, a vida não tem significado algum, compete a cada um de nós ressignificá-la.

Mas tudo é paradoxal. Se por um lado somos condenados a agir de forma livre e ilimitada, nossas escolhas geram consequências para toda a sociedade. Escolher, portanto, é também escolher para os outros. É a realidade, insensível, que se impõe à revelia de nossas fantasias, limitando as nossas ações para que os outros também possam ter um pouco de liberdade.

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**de Beauvoir, Temps Modernes, outubro de 1945, Gallimard, p. 399.

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