A máscara de Dionísio e a matriz religiosa do teatro

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Por Janaina Iszlaji

 

culturas. Dentro dessa diversidade, observam-se elementos de culto que se repetem e que se tornam cada vez mais complexos à medida que as sociedades se desenvolvem. Dessa evolução, surgem as primeiras formas de representaçãoteatral. Na Grécia, esse processo tem início com os ditirambos – cantos corais entoados durante os rituais sacrificiais em honra ao deus Dionísio – que, aos poucos, sofrem alterações e assumem uma forma dramática particular. Embora não tenhamos fontes arqueológicas suficientes para compreender como exatamente o rito levou ao drama, possuímos textos e descrições de festivais do século V a.C., que atestam a natureza religiosa das tragédias gregas.

Dada a relação apresentada acima entre religião e nascimento do teatro, uma pergunta nos parece incontornável: o que os rituais e cultos primitivos nos revelam sobre a essência do fenômeno teatral? Para respondermos a essa pergunta, comecemos por analisar os tipos de ritos e cultos que eram comuns durante o período da pré-história do teatro.

Dentre os principais rituais dos povos primitivos, destaca-se aquele realizado pelos caçadores da Idade do Gelo. Esses homens costumavam se reunir em cavernas como a de Montespan – paramentados com peles de urso – para dançar em torno da imagem desse animal, cumprindo um ritual alegórico-magico, no qual, segundo Margot Berthold, “matavam a imagem do urso para assegurar seu sucesso nacaçada”[1]. Tão ou mais importante que esse ritual, eram as festas que ocorriam sazonalmente no Japão e na Grécia com o objetivo de, por um lado, cultuar alimentos como o arroz e o trigo e, por outro, pedir a intervenção divina para assegurar sucesso na colheita. Em ambos os casos, as tribos ou comunidades estabeleciam através do rito uma forma de comunicação com os deuses a fim de garantir os meios para sua sobrevivência.

Com o passar do tempo, as celebrações se tornam mais complexas, pois passam a agregar elementos como drogas, máscaras, músicas, danças, cantos e procissões. Os xamãs, assim como os caciques, desenvolvem estados alterados de consciência que os permitem entrar em contato direto com os deuses e demônios. Durante o transe, o xamã dá voz aos deuses e intercede em favor do grupo (pedindo para afastar inimigos, fazer chover, curar doentes etc.). Essa atmosfera do rito coloca todos os participantes em uma realidade distinta daquela da vida cotidiana, – eis o germe da ilusão teatral.

No Ocidente, o teatro nasce do culto a Dionísio (instituído oficialmente em Atenas por Pisístrato no século VI a.C). Os rituais dedicados ao deus do vinho – oriundos da Trácia ou da Frigia – ocorriam nas montanhas, na parte da noite e reuniam devotos que se paramentavam com chifres e peles de bode. Ao som de cantos e instrumentos de percussão, eles caçavam os bodes e os sacrificavam em honra ao deus. Durante o ritual, mulheres serviam vinho aos fiéis e o coro de sátiros dançava e cantava ao redor da máscara-ídolo do deus enquanto todos entravam em uma espécie de transe coletivo.

Na famosa peça As Bacantes de Eurípedes, Dionísio – personagem principal da trama, – apresenta-se como profeta vindo do estrangeiro e como deus. Ele, mostra-se, portanto, como deus-mascarado, ou seja, como um deus que dá voz a um Outro. E nesse jogo cênico, o objetivo de Dionísio não é outro, senão revelar-se a si mesmo; ser reconhecido e aceito enquanto divindade em Tebas. Ao longo da peça, alguns personagens aceitam a natureza desse deus e outros não. O desfecho feliz ou trágico desses personagens é dado, segundo a interpretação de Jean-Pierre Vernant, conforme a aceitação ou negação de Dionísio; a aceitação ou negação do Outro, ou, dito de outro modo, daquilo que é estrangeiro. Se, por um lado, o deus do vinho representa a exaltação da festa, a alegria do amor, a comunhão com a natureza e o desejo de libertação; por outro lado, ele representa a impureza, a recusa da alteridade, o mergulho no caos, na loucura da bebida e na violência desmedida.

Como afirmamos anteriormente, a natureza dos rituais, incluindo o ritual de Dionísio, nos revela aspectos essenciais do teatro. No rito, por exemplo, os presentes participam do transe, isto é, da criação de uma outra realidade. No teatro, os presentes participam da ficção, isto é, da criação de um mundo imaginário. Em ambos os casos, devotos e espectadores partilham do desejo de evasão e da vontade de se alienarem de suas dores, buscando ajuda ou amparo no Ultramundo ou na Ilusão do drama. O xamã – aquele que dá voz aos deuses e demônios, – se transfigura no ator que dá voz ao personagem no palco. A máscara nos convida a saímos de nós para acolher e reconhecer o Outro, o estrangeiro e aspectos desconhecidos de nós mesmos (nossas dores, nossos medos, nosso lado animal, nossa violência, nossa sexualidade etc.).

No mundo do rito e no mundo do palco, a verdade transparece pela máscara. Da festa nasce o universo da farsa, onde atores dão voz ao Outro, através da “possessão” ou da “encarnação” de personagens. Nesse processo, o “farsante” abre canais de comunicação físicos e espirituais com o espaço natural e com o espaço da criação ficcional: ele é homem-imitador e herói ao mesmo tempo. Do altar montado ao lado da Orchestra, a máscara de Dionísio nos olha com seus olhos enigmáticos, não nos deixando esquecer de que estamos ali presentes para ver, mas que, ao mesmo tempo, somos vistos e observados. Dessa brincadeira do ver e ser visto nasce o duplo espaço do teatro: o palco e a plateia.

Por fim, não poderíamos deixar de mencionar como o caráter profilático, terapêutico e purificatório do rito se observa igualmente no fenômeno teatral. O termo κάθαρσις, frequentemente traduzido por purgação, assumia o sentido de “sair para fora” em contexto médico ou ritualístico na Grécia. De acordo com a medicina tradicional de Hipócrates, uma pessoa costumava ficar doente, quando os humores de seu corpo, – sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra – entravam em desequilíbrio. Para curar o doente, costumava-se ministrar um tipo de medicação que fosse capaz de acelerar a doença até um ponto de crise, no qual, o corpo expelia, por si só, o patógeno. Para os gregos, somente após essa purgação, o corpo reencontrava o equilíbrio e a saúde.

Além de utilizada nesse contexto médico, catarse designava o estado de êxtase, dos fiéis, quando esses pareciam sair para fora deles mesmos, durante os ritos de purificação. Ora, sabemos que Aristóteles utilizou essa mesma palavra para descrever a finalidade da tragédia em sua Poética. Tendo em vista esses aspectos, nos parece correto afirmar que o teatro, em sua essência, possa contribuir para a cura de certos males físicos e espirituais, através da catarse das emoções. Claro que o tema merece um estudo à parte, porém, os dados aqui apresentados nos permitem levantar a hipótese de que o teatro grego, provavelmente, tenha servido como um local destinado a purificação dos gregos durante os festivais religiosos. Assim, tal como os rituais, teria ele contribuído para o reestabelecimento do equilibro da comunidade e, consequentemente, para a prosperidade da polis.

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* Janaina Iszlaji é professora de teatro e Mestre pela Universidade de Estrasburgo. Especializada em tragédia grega. ela coordena atualmente o nûcleo de estudos teóricos da Mirante cia de arte.

 

Notas:

[1] BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. Trad. Maria Paula V. Zurawski. São
Paulo: Perspectiva, 2000, p. 3.

Bibliografia de apoio:

BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. Trad. Maria Paula V. Zurawski. São
Paulo: Perspectiva, 2000.

ORTEGA Y GASSET, José. A Idéia de Teatro. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1991.

PAILLIER, Magali, La katharsis chez Aristote. Paris: L’Harmattan, 2004 (Ouverture Philosophique).

VERNANT, J-P. Mito e Religião na Grécia Antiga. São Pualo: Martins fontes,
2006.

____________; VIDAL- NAQUET, P. Mito e Tragédia na Grécia Antiga. São Paulo:
Livraria Duas Cidades 1977.

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