Helder Mariani: sobre um banquinho de 3 pés

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Por Mariana Chiuso

 

Helder, escutando o relato de sua vida percebe-se que o ritual sagrado católico e sua teatralidade marcou profundamente a sua alma. O catolicismo é a religião do Verbo Encarnado e o teatro é uma arte profundamente encarnada: presença plena do corpo, tanto do ator como do espectador. A trindade: ator, texto, público; a Trindade Santíssima, um dos mistérios de fé no Catolicismo. Em que momento a vereda da vida te leva pelo afluente do teatro te afastando da vocação monástica?

Mariana, quando lembro da minha infância, lembro da Igreja Católica. Lembro de cenas como eu dormindo nos bancos da Igreja enquanto meus pais estão ensaiando o coro para uma grande festa litúrgica; eu brincando no imenso quintal paroquial, dormindo atrás da poltrona no escritório do pároco Monsenhor Archimedes Gai, um intelectual do interior a quem eu devo muito. Nas sextas-feiras Santas, ver a minha mãe saindo da sacristia toda de preto, como Verônica, cantando na procissão, assim como ver o Padre Gai em silêncio entrando na Igreja e prostrando-se no altar, era muito forte e inspirador para mim. Então, sempre estive muito perto da Igreja e perto da preparação destas festa e o teatro vem junto com tudo isto.

Tenho 56 anos de idade e sou de uma geração já criada com a televisão. Me lembro das novelas, dos casos especiais, de Ruth e Rachel em “Mulheres de Areia” na versão de 1973 – saudosa lembrança especialmente agora que o Brasil perde uma das mais importantes atrizes do seu teatro e televisão: Eva Wilma. Assistindo televisão e mais ouvindo falar de teatro do que assistindo teatro porque nasci em Barretos e há mais de 50 anos atrás Barretos era longe de um centro cultural mais vivo. Existiam grupos de teatro na cidade como o do professor Expedito Marques que tinha um grupo muito importante. Isto foi criando em mim esta vontade do teatro. Lembro-me dos cirquinhos que eu organizava com as primas depois do almoço de domingo. Dirigia, atuava, enfim, isto ficou em mim.

Comecei a trabalhar com 16 anos de idade no antigo plano do Estado chamado “Primec”: Plano de integração do menor e da família na comunidade. Trabalhava com recreação, reforço escolar e teatro. Digo que naquele momento minha vida profissional foi fundada, o destino selou minha vida ali  porque tinha o teatro e a educação, e uma educação que buscava a igualdade e a justiça social. Por isto continuei muito presente na Igreja porque eu conheci a Teologia da Libertação e ela me calou profundamente, tanto no meu racional quanto no meu espiritual. A Teologia da Libertação foi a resposta que encontrei aos meus anseios místicos, religiosos, espirituais e políticos por justiça, igualdade etc. Se a minha vida fosse um banquinho de três pés, um pé seria a formação religiosa, o outro a educação e o outro o
teatro. Entrei no Mosteiro de São Bento em São Paulo no início de 1990 e passei na clausura dois anos e meio. Fiz o postulantado, o noviciado e quando fui  fazer os primeiros votos, pedi para sair. Ali também eu trabalhava no Colégio como educador, dava aulas de teatro. Sempre estes três pilares. O mosteiro aconteceu na minha vida porque o impacto da liturgia monástica foi tão forte pra mim que me remeteu àquelas antigas liturgias da minha infância, mas muito melhor produzidas e ensaiadas. Joseph Campbell dá o exemplo da Catedral de NY, uma das maiores metrópoles do mundo, e de repente você entra naquela Catedral e é lançado para outro mundo, o do transcendente, do mistério; era assim que eu sentia quando ia na Abadia do Mosteiro de São Bento ao lado do metrô. Fui a uma missa e aí vi, de fato, este ritual, o canto gregoriano, o movimento dos monges, entradas e saídas precisas, tudo bem ensaiado, te levando à reflexão, para uma intimidade maior com Deus: o incenso, a iluminação e o órgão de tubos! Senti que ali era o meu lugar, eu que sempre fui tocado pelo teatro, fui tocado ali pela vida religiosa e me permiti experienciar esta vida. Foi um período muito importante inclusive na minha formação : estudei latim, grego, exegese bíblica, história monástica, os Padres da Igreja, a espiritualidade beneditina, a regra de São Bento e filosofia.

Porém, por divisões políticas, eu ainda muito ligado à Teologia da Libertação, sentia que só este lado teatral, místico, não dava conta. Eu queria ter uma ação social mais efetiva! Este foi um dos motivos pelo qual deixei o Mosteiro de São Bento. Não houve uma separação entre a vocação religiosa e teatral, os chamados para as duas sempre existiram e as duas sempre se interpenetraram. Como você colocou muito bem, religião e teatro se encontram; as origens do nosso teatro Ocidental na Grécia Antiga vêm dos antigos rituais à Baco ou Dionísio. Depois, na Grécia, quando este teatro se transforma em tragédia, temos um espaço muito importante da democracia grega: de reflexão e, portanto, de formação do homem grego. Pela força que a religião e que o teatro tiveram na minha vida, um nunca abandonou o outro.

Você diz que a Teologia da Libertação te marcou profundamente e que você se interessa por uma fé sem muitos adereços.  Contudo, será que este aspecto da teatralidade católica moveria seu coração se não fossem os adereços, a mãe toda vestida de preto para ser Verônica, o silêncio, os cantos, os paramentos, enfim, a força poética dos símbolos como porta para o transcendente?

A Teologia da Libertação é minha medida, minha bússola até hoje! O que mais me interessa enquanto postura da instituição católica, da Igreja, é a Teologia da Libertação, tanto no aspecto espiritual quanto no aspecto temporal, político. Leonardo Boff, Dom Hélder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, Frei Beto, são todos meus mestres e formadores. Os discursos deles me interessam muito! Frei Beto e Boff continuam escrevendo e conseguem se atualizar e atualizarem o próprio elemento da Teologia da Libertação.

 A Teologia da Libertação tem um ritual lindo! Tem muitos símbolos, símbolos do povo! Os cantos são lindos, de uma poesia bonita e ao mesmo tempo cantos militantes, buscando a construção do Reino de Deus aqui na terra, buscando cumprir a vontade de Deus “aqui na terra como no céu”, e a vontade de Deus é que todos sejamos irmãos, filhos do mesmo Pai, independente de credo, raça, sexo, idade, de condição social; somos todos filhos de Deus! Isto é muito importante! Nestes dias em que testemunhamos Israel e Palestina neste embate terrível que vem de décadas; este povo de Israel que vem desde a época de Moisés quando começam a se formar enquanto povo, lutando com os povos daquelas regiões, lutando com os povos que ocupavam a terra prometida. É uma luta de 5 mil anos! A Faixa de Gaza, a cidade de Jerusalém, capital das 3 principais religiões monoteístas do mundo, dividida, ofendida, ultrajada pelo ódio e pela violência.

 A Igreja é tão paradoxal, né? Tem um lado tão rico e tão poderoso ainda hoje, mas também tem o lado dos mártires, dos que assumiram a opção evangélica de Jesus pelos pobres e marginalizados, os santos que entregaram suas vidas pelo amor, inspirados no grande Amor de Jesus. A Igreja tem estas contradições. Por isto que eu também, mas não só, me enveredei pelos caminhos de contar através do teatro a vida dos santos ou algumas palavras dos santos.

Então Helder saiu para sua jornada pelo teatro encontrando aí palco para poder se colocar livremente reflexões sobre fé e razão, sobre o ser ou não ser. Paralelamente, a vida acadêmica segue uma riqueza criativa: Direito, Filosofia… Dizem que acadêmicos são homens com a cabeça nas nuvens – o que parece contrapor a realidade do artista teatral tão encarnado! Sua formação acadêmica entrou em choque com a criação artística ou não? Como você harmonizou estes dois universos?

Tentei relacionar a vida acadêmica com a vida artística. A mesma interpenetração que a gente falava há pouco sobre os rituais religiosos e o teatro, busquei também, para ser mais preciso, a educação enquanto a construção do ser humano. Tanto na minha tese do mestrado e do doutorado existe esta tentativa de fazer uma ponte entre a vida acadêmica, a educação e o teatro; um não pode existir sem o outro.

Observo que nestes últimos  anos os intelectuais da vida acadêmica que de fato tem uma profissão na Academia estão muito dentro dela. A Academia já foi mais aberta e precisa se abrir mais para a sociedade, nisto vêm à mente a figura do “philosophe”, os filósofos franceses do século XVIII que estudei. Eles não eram os professores de filosofia como conhecemos hoje, não! Eles tinham sim a função de exercer o pensamento crítico, de buscar e lutar pelas ideias, mas eles tinham um trabalho muito ativo dentro da sociedade: eles intervinham com suas ideias, muitos eram artistas. Só para citar os 3 que trabalhei na Academia: Rousseau, Diderot e Voltaire. Os três escreveram peças de teatro, poemas, romances, os três fizeram dos palcos verdadeiros palanques para discursar e defender as próprias ideias.

Meu objeto de estudo, tanto no Mestrado quanto no Doutorado, foi sobre o ofício do ator. O mestrado: “ A mentira verdade do ator – o ofício do ator a partir da carta a D´alambert  de Jean Jacques Rousseau”, e o doutorado: “ O ator paradoxal – o ator das luzes”; no doutorado eu coloco um diálogo entre Rousseau e Diderot com elementos e reflexões que eles têm em comum sobre o ofício do ator e tento construir um ator iluminista a partir da proposta destes dois grandes pensadores – mas tendo Voltaire também. Mesmo em áreas diferentes fui buscando as mesmas coisas. Estes padres e monges que tem uma forma precisa de andar dentro do altar, o ator em cena e o professor na vida acadêmica procurando sempre a figura do ator que subverte a realidade.

Subverter a realidade é a função do sacerdote, seja de qual religião for, do ator no palco e é a do cientista, do acadêmico, do professor! Subverter a realidade no sentido de poder criar uma nova ideia, de pensar mundos diferentes e não só alimentar o status quo, o mundo como se apresenta. O educador existe para ampliar o horizonte do seu estudante, do seu discípulo; despertar no seu aprendiz a vontade de ampliar, de conhecer e buscar mais. Esta liberdade que a filosofia pede, para poder construir-se um pensamento crítico, é a mesma liberdade que se faz necessária para a criação artística e que, por sua vez, é a mesma liberdade que norteou o pensamento de muitos santos e santas, homens e mulheres que foram canonizados por terem escritos coisas maravilhosas e vivido vidas maravilhosas!

Você está tecendo um novo espetáculo e, agora, sobre Edith Stein. Você diz:”me interessa a humanidade da Edith”. Te pergunto: como você compreende a santidade dentro da Igreja? Por que um santo, uma santa, é um ser humano plenamente humano, não um x men, um elfo, um semideus inalcançável. Será que quando você busca esta face tão humana dos santos não está também a buscar a face da sua própria radicalidade, Helder?

Foram alguns espetáculos ligados aos temas religiosos ou sobre os santos. O primeiro, que considero “profissional” – porque profissional e amador dá uma outra reflexão; foi Malkhult, em 2003, que é uma das séforas da cabala judaica, dirigido por uma judia e uma das grandes atrizes brasileiras: Denise Weiberg, tendo direção musical de Eduardo Agie. Este espetáculo aconteceu dentro de uma capela centenária do Colégio Santa Inês no bairro do Bom Retiro, em SP. Malkhult contava o homem no estado paradisíaco e sua queda, a violência, a guerra, e terminando com a Páscoa, a redenção e a libertação. Depois disto, fiquei anos debruçado sobre Santa Teresinha do Menino Jesus, de quem sou muito devoto. Fui descobrindo nos textos autobiográficos dela, que à princípio parecem cheios de florzinhas ou reflexões ingênuas, mas que escondem uma luta espiritual muito grande, esta luta entre fé e razão que eu já mencionei. Esta luta espiritual de santa Teresinha eu queria  transformar numa peça de teatro. Também sempre desejei humanizar o santo, porque normalmente é que achamos estes homens e mulheres muito distantes de nós, com superpoderes, mas não! Eles foram humanos como nós, com suas lutas internas. Quando se humaniza a vida dos santos, acho que isto aproxima mais o discurso religioso, porque se ele, o santo, conseguiu, eu também posso conseguir.

Montei “Terezinha”, depois outro sobre São João da Cruz: “ João da Cruz”, e percebi esta minha vocação carmelita por sentir-me muito tocado pela espiritualidade carmelitana, que tem na tradição espiritual da Noite Escura a sua base mais forte; que São João da Cruz cantou em verso e prosa, que Santa Teresinha também viveu séculos depois e também Santa Teresa D´Avila.

“A noite escura”! O que significou na sua vida deparar-se com esta experiência mística na vida dos Santos.  E você, acredita que ela é uma experiência real? Tem medo de vivê-la?

Sim, acredito ser esta uma experiência viva! A tradição da Noite Escura sempre esteve presente na Bíblia, há relatos dos patriarcas, dos profetas, dos santos tendo este embate entre a fé e razão, tendo este embate com Deus, duvidando! A Noite Escura é este conflito entre a fé e a razão, é quando você não vê luz no fim do túnel e, mesmo na escuridão da noite, sem nenhuma luz, você trava esta batalha interna querendo ter a fé, acreditando, buscando. Sempre que eu falo de fé, de espiritualidade, nas preparações que dei aos jovens para a Crisma, a Primeira Eucaristia, na aulas de cultura religiosa, de religião no Ensino Médio com os Salesianos, sempre fiz questão de tratar desta fé árida, dura, que não é uma fé da teologia da prosperidade: “ comecei a acreditar em Jesus Cristo e agora tenho o carro do ano!”, “ eu que estava desempregado, comecei a trabalhar e hoje sou o dono da minha empresa porque Jesus me deu minha empresa”, não gosto deste “ toma lá da cá”, desta relação capitalista com o Divino! A fé precisa ser livre! A Noite Escura nos exercita nesta fé livre de querer coisas; é claro que o próprio Jesus Cristo diz: “Pedi e recebereis! Batei e será aberto!”, mas isto não significa que ficaremos presos em pedidos, mesmo que sejam pedidos legítimos! Mas que a nossa fé não esteja embasada nisto. Lembrei-me de Santa Zélia, mãe de Santa Teresinha, que nas cartas que enviou ao seu irmão quando já estava com o câncer nos seios diz que foi até Lourdes em peregrinação pedindo a cura do câncer, mas que Nossa Senhora não quis e ela não pôde fazer nada. Santa Teresinha também diz isto, que quando pedimos algo a Nossa Senhora e ela não atende é porque Ela não quer e temos que aceitar. Acho bonito isto, porque fugimos desta teologia da prosperidade que hoje está muito em voga principalmente nos meios pentecostais, não me refiro à Metodista, a Batista, não. Estas novas igrejas que surgiram no Brasil estão muito baseadas no “toma lá da cá” e não aceito que utilizem a boa fé das pessoas para conseguirem dinheiro. Isto não é possível!”

Se você pudesse voltar no tempo e se encontrar com o Helder no início da carreira, qual conselho ou orientação você daria para ele?

Trabalhe mais, Helder!

Hoje é muito comum encontrarmos artistas se “amoldando” à editais (até por questão de sobrevivência) ou mesmo deixando seus processos de criação em “modo espera” para quando a garantia da grana vier, através de edital estatal, edital privado, ajuda de algum mecenas, etc. A cultura é essencial para a vida de um povo e contar com investimento do Estado é muito importante, mas como você avalia a relação do artista que busca apenas a segurança dos editais para criar? Será que não nos diminuímos artisticamente numa relação muito pautada pelo “valor de mercado”? Alguma vez você já se sentiu sufocado ou limitado neste movimento em busca de financiamento?

O artista é livre! O filósofo é livre! O homem religioso é livre! Esta história de se moldar de acordo com o que o programador do Sesc unidade tal quer, ou de acordo com o edital do governo do Estado, do Município, ou governo Federal, seja quem for, não! É limitar, é restringir! A arte é livre, não há que se prender a um discurso, não há que se instrumentalizar a arte a um discurso religioso, ideológico ou político. Não! É muito duro porque vivemos em um sistema capitalista e precisamos de dinheiro para viver e para fazer teatro, para fazer arte, e muitas vezes temos que negociar até a produção artística para garantirmos este dinheiro, mas esta negociação não pode significar a redução do seu trabalho e sua submissão artística diante de uma ideologia, de uma política de um poder, seja até o poder do dinheiro. Tenho um lado muito Quixotesco e agora, envelhecendo, me sinto mais ainda Dom Quixote. A coisa do dinheiro sempre me irritou um pouco. Quando pensamos nos santos, nos religiosos, nos grandes artistas, dos grandes filósofos, eles estão acima do dinheiro, eles se libertaram do dinheiro. São Francisco nos ensina este despojar das coisas que também tem a ver com esta tradição espiritual da Noite Escura.

Fotos dos espetáculos: João da cruz (2018), com o ator Conrado Caputo, Malkhut (2003) e Theresinha (2014), com a atriz Gabriela Cerqueira.

 

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Mariana Chiuso é atriz, pedagoga e fundadora da Mirante cia de arte.

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