Por Mariana Chiuso
Tita, nascida numa família de artistas que cantam, tocam, compõem e atuam, por que você elegeu a dança como linguagem para a expressividade do seu ser? Qual a origem deste encantamento?
Sempre me seduzi por todas essas formas de expressar, o encantamento em sí esteve mais na maneira de fazer do que da linguagem propriamente, ou seja, eu precisava abrir mão de um colorido de desejos pra explorar todo o degrade de uma única cor. Nunca houve propriamente o momento de fazer essa “com- cor- dança” , uma escolha consciente dessa expressividade, eu apenas seguia o que era natural e o que me era prazeroso.
Mais velha entendi que pra fazer o que mais gostava precisava abrir mão de coisas divertidas e me dispor a desafios.
Você me disse numa conversa onde falei sobre as múltiplas lesões no meu tornozelo, que você tem uma cardiopatia. Mesmo assim, dança, gira, salta, brilha de tirar o fôlego dos com ou sem “patia” alguma. Esta realidade do seu corpo já te fez pensar em parar de dançar? Como você lida com esta tua circunstância?
Recentemente eu descobri que não tenho mais prolapso da válvula mitral, na realidade eu ainda tenho exatamente o que eu tinha, mas hoje o nível que eu tenho não é mais considerado uma cardiopatia, então, é como se não tivesse, mas ainda tenho, rsrsrs. Digo isso porque essa experiência acabou se tornando um exemplo bastante simbólico pra mim, acredito e credito o conhecimento médico e científico, mas me concentro nos meus hábitos de pensamento, alimentação, sono e emoções, que são os maiores balizadores da minha saúde. A determinação em manter uma rotina intensa de dança é o que me faz buscar saúde, é mais fácil pra mim me estimular a manter hábitos saudáveis sob pretexto de poder dançar mais e melhor do que pra, sei lá, viver mais, ser geração saúde ou qualquer coisa assim…
Você é uma artista muito enraizada na cultura popular brasileira. Num Brasil tão rico culturamente há também uma riqueza espiritual das mais diversas. Você se sente enraizada espiritualmente em alguma tradição religiosa? Se sim ou se não, de que maneira a via espiritual dialoga com teu fazer artístico?
Bacana essa pergunta. Vou começar dizendo duas coisas importantes, eu tenho muito medo de espirito e acredito em toda história mística que me contar. Quando criança e adolescente passei por diversas experiências “transcendentais”: retiro do silêncio, radiestesia, leitura de alma, Fátima Toledo, psicografia, etc. Em 2012 fiz uma grande viagem que iniciou na Europa e finalizou na Índia a procura de uma conexão entre dança e espiritualidade.
Bom, tudo isso me fez respeitar as formas de espiritualidades e religiões mas não me conectar a nenhuma. Como brasileira e sobretudo como ser humana me seduzo por uma “busca espiritual” mas compreendi que somos capacitados a mergulhar nisso de forma autônoma – minha postura corporal, minha rigidez muscular e respiração são meus melhores gurus! Não procuro transpor nas minhas criações meus caminhos espirituais, mas não há como, sendo o reflexo da minha rotina, e de mim, elas vão sempre expor isso de alguma maneira.
Hoje é muito comum encontrarmos artistas se “amoldando” à editais (até por questão de sobrevivência) ou mesmo deixando seus processos de criação em “modo espera” para quando a garantia da grana vier, através de edital estatal, edital privado, ajuda de algum mecenas, etc. A cultura é essencial para a vida de um povo e contar com investimento do Estado é muito importante, mas como você avalia a relação do artista que busca apenas a segurança dos editais para criar? Será que não nos diminuímos artisticamente numa relação muito pautada pelo “valor de mercado”? Alguma vez você já se sentiu sufocada ou limitada neste movimento em busca de financiamento?
Acho esse tema valiosíssimo, é uma reflexão a que me cerca muito. Vou contar meu ponto de vista, mas é importante frisar que fazem parte da minha experiência pessoal e que não julgo ser necessariamente o caminho correto a todos.
Até 2019 eu moldava meus desejos às demandas de editais, passei em muitos, criei espetáculos, geri projetos, juntei dinheiro. Até que pela primeira vez não passei em nenhum e me deparei com um novo desafio: ter tempo e dinheiro pra escolher por onde ir naquele momento. Foi uma sensação apavorante, ter que entender qual era minha principal necessidade, o que fazia sentido e por onde eu precisava seguir era tanto ar que não sabia respirar. Cavuquei la dentro e depois de uma fase turbulenta cheguei no projeto mais significativo que já realizei, o Planta do Pé na Estrada. Não havia financiamento, fiz questão de não ir atrás de nada que obrigasse a me moldar e o projeto só foi possível por conta de uma rede que foi se formando: agitadores culturais de muitos estados que me articulavam com prefeituras, sescs, ongs e escolas para que eu pudesse percorrer as então 40 cidades me apresentando, realizando oficinas e fazendo o Cabeção. Foi então que chegou a pandemia, me pegou aqui no sertão da Paraíba e tomei a decisão de ao invés de dedicar meu tempo a editais eu iria investir em criações virtuais para que as pessoas pudessem conhecer meu trabalho e me convidarem à projetos identificados com ele. Até aqui vem funcionando, não me irrito mais com editais mal elaborados, com frustações de quando não passo e sobretudo desfruto do privilégio de gerir minhas criações.
Conto esse processo para refletirmos sobre como os editais moldam as criações e como é ingrato esse processo de dependência. Sem dúvida cabe ao governo propiciar formas de subsídio às artes e todos os envolvidos, mas a liberação periódica de editais subdividido em categorias discutíveis não é política cultural e o que precisamos é de gestão no setor da cultura com visão e experiência capaz de criar formas de absorção e investimento à todos os talentos e competências artísticas que o Brasil tem.
Qual foi a pessoa ou o acontecimento que mais te marcou ou influenciou a sua arte? Por quê?
Algo que sempre me afetou intensamente é o contexto social ao qual minhas maiores referências são frequentemente expostas. Vi Caboclo de Lança chorar contando que tinha acabado de apanhar da polícia, vi ensaio de Caboclinho ser cancelado por evangélicos quebrarem cacos de vidro no chão, vi a pobreza material conviver com a abundância de dignidade, vi a injustiça conviver com a resiliência. Isso me afeta, me faz refletir cotidianamente sobre o meu fazer, como fazer, porque fazer, a pensar poesia, beleza e brasilidade como atos políticos.
Conte para nós quais são as criações que estão no forno, que estão no ar e o que você busca vivenciar ainda como artista?
Meus dois projetos do momento são a criação de um curso online de dança e a montagem de um novo espetáculo que seguirá um formato híbrido. Estou aqui no sertão em função dessas criações.
Outro desejo artístico, que por hora está na categoria sonho e não projeto, é sair pelo Brasil e pelo mundo com o Cabeção, mostrando as belezas daqui e os absurdos de acolá dando rizada e fazendo rir.
Se você pudesse voltar no tempo e se encontrar com a Tita no início da carreira, qual conselho ou orientação você daria para ela?
Desapega de onde você quer ir e desfrute de onde você está.
OFF OFF: BRASIL, AME-O OU DEIXE-O? POR QUÊ?
Deixamos. Sem sair do território abandonamos o que poderíamos ser. Porque tivemos muita Europa, porque assassinamos nossas sabedorias, porque tivemos poucos Mario de Andrades, porque ainda macaqueamos o que vem de fora, porque olhamos muito pra fora.
Amamos. Sem esquecer do invisível nos identificamos. Porque dividimos um passado, porque muito ainda nos toca, porque aos poucos muitos se tocam, porque temos um legado de resistência, porque é o que nos resta.
Fotos dos espetáculos: Compasso Sincopado (2016) e Planta de pé (2013)
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* Mariana Chiuso é atriz, pedagoga e fundadora da Mirante cia de arte.