São memórias de jornal recolhidas do mestre carioca e costuradas de tal modo que deram um livro autobiográfico póstumo, publicado em 1980.
Por Paulo Rodrigues
Vamos logo dar um exemplo, para o leitor sentir melhor o sabor de toda a obra.
Fiz o exame vestibular na Escola Politécnica [hoje, faculdade de engenharia da UFRJ, no Largo de São Francisco] no ano de 1912; tinha dezesseis anos. Naquele tempo não se falava em Universidade, e quem sentisse correr nas veias o sangue da engenharia não precisava fazer mais do que munir-se de uma certidão de nascimento, pagar as taxas e fazer o vestibular. Ninguém tinha empenho de investigar onde e com quem aprendera eu que a soma dos ângulos internos de um triângulo é igual a dois ângulos retos. O ensino era livre e o mundo despedia-se da ‘belle époque’
Que texto delicioso! Essas memórias são 392 páginas ilustradas com 10 bicos-de-pena da artista plástica Abigail Rodrigues, “com perdão da palavra”, minha mulher. Sem a fonte do jornal e sem data. Essas ‘histórias pequeninas’ contadas por Corção são assim como ele gostava de fazer, têm de certo modo aquele jeito das crônicas de Machado de Assis. Por isso, o que dizia mestre Corção dessas crônicas machadianas — “… direi que é nas crônicas, por causa de sua maior liberdade, que melhor se observa a tendência de Machado de Assis para o divertissement que toca as raias do delírio” –, digo eu agora das crônicas de Corção. Vá lá depois, leitor, e confira!
Outra coisa que lembro é o respeito e a admiração que tínhamos todos pela instituição, e a cerimônia com que pisávamos as pedras que outros antes de nós tinham assentado. Respeito e agradecimento. Muitas vezes fizemos coisas menos defensáveis e praticamos algumas violências. Vejo por exemplo a figura transtornada de um colega que deu duas voltas no pátio interno correndo atrás do professor com um vidro de ácido sulfúrico. Quando cinco ou seis conseguiram agarrá-lo, ele gritava que queria desfigurar aquele filho da… Por onde se vê que éramos efervescentes como à idade convinha; mas não me ocorre à memória uma só situação, uma só lembrança do ânimo reivindicatório e contestatório do jovem de hoje que — com honrosíssimas exceções – quer tudo para ele, de graça, e ainda cospe nas mãos que lhe preparam o minguau.
Nosso estudo era caro, não tínhamos meia-entrada de cinema, e muito menos comida de graça. Muitas vezes voltei para casa a pé e sem lanche. Sim, a pé do Largo de São Francisco à Rua Haddock Lobo; mas isso não era comentado, e se inseria sem espanto no bolo da alegria conjunta da pobreza, a minha amiga de infância.