Conversa em Sol Menor é composto de memórias de jornal recolhidas do mestre carioca e costuradas pelo escritor Paulo Rodrigues de tal modo que deram um livro autobiográfico póstumo, publicado em 1980.
Por Paulo Rodrigues
‘Naquele tempo…
“Naquele tempo, todas as tardes, depois do trabalho na Rádio Cinefon, eu fazia plantão no Centro Dom Vital, na Praça 15 de Novembro e depois na Rua do México, esquina da Rua Araújo Porto Alegre. Durante quinze anos lá estive todas as tardes. Meu dia era dividido em dois ofícios, dois interesses, duas vocações: na parte da manhã, e depois do almoço até as quatro e meia da tarde, eu era professor de eletrônica aplicada na Escola Técnica do Exército (hoje IME), onde ensinei 35 anos, na Escola Nacional de Engenharia e na Companhia Telefônica Brasileira.
Vide Editorial
542 páginas
Às quatro e meia da tarde saía correndo da Engenharia, como colegial feliz, e voava para o Centro [Dom Vital] onde ficava falando das belezas e grandezas do Reino de Deus até o anoitecer. Depois da publicação bem sucedida de ‘A Descoberta do Outro’, do dia para a noite saí da obscuridade tranquila e discreta em que vivera mais de quarenta anos. Centenas, milhares de vidas invadiram minha vida. Conheci nesse tempo, que hoje parece irreal, um mundo católico em que todos os moços tranquilamente sabiam que o comunismo era uma porcaria por si mesma evidente. Fui convidado várias vezes a Belo Horizonte, onde fazia quatro ou mais conferências em salas repletas.
Meus companheiros de excursão, Carlos Lacerda, Gladstone Chaves de Melo e o inesquecível José de Carvalho admiravam-se, como eu mesmo, dos alto-falantes que corriam as ruas de Belo Horizonte berrando meu nome e anunciando minhas conferências. Em São Paulo e em Porto Alegre não foi menos caloroso o acolhimento dos estudantes, e na Escola Nacional de Engenharia, nos primeiros anos de meu ensino, creio que em 1952, fui escolhido como paraninfo do ano, quando a UNE já começava a dar sinais de penetração da Porcaria. Curioso fenômeno! Por ingenuidade e falta de leitura das revistas européias (já que o tempo disponível era todo aplicado em matéria perene), eu não sabia que em Paris nos anos 40 o progressismo já relinchava e defecava livremente nos meios católicos.
Em poucos anos para grande parte do clero e da massa estudantil passei de ídolo a espantalho, tendo eu permanecido rigorosamente o mesmo.
Antes de acontecer aqui este espantoso fenômeno, já começáramos no Centro Dom Vital um curso de Doutrina Sagrada. Uma moça muito discreta e mais um moço menos discreto procuraram-me para me propor a idéia de uma aula de religião às quartas-feiras numa das pequenas salas do casarão da Praça 15, onde frei Pedro Secondi nesse tempo ensinava filosofia tomista com clareza e alegria. Aceitei a proposta. Logo na primeira quarta-feira aos dois fundadores do curso ajuntou-se um doido manso, que tinha aquela hora livre às quartas-feiras, e andava a fazer um estudo de religiões comparadas. Dava a cada uma sua nota de valor, à medida que prosseguia. No tempo em que aderiu a nosso curso, o Catolicismo tinha grau 85. Desapareceu um dia. Se ainda vive, certamente dará grau 100 às Conferências Episcopais e aos Sínodos.
Para compensar a perda do metódico louco, apareceram dia a dia novos alunos, e até famílias inteiras começaram a formar um grupo de católicos cuja maior, ou melhor parte, resistiu aos ventos e perseverou no estudo. Durante trinta anos essa tribo, essa pequena nação que militou sob a bandeira de Cristo-Rei, deu-me atenção, agasalho e amor, que largamente compensaram a perda dos que passaram a se rir de mim com o riso de que são capazes. Hoje as idéias novas de um lado e a Doutrina Sagrada de outro se separam com clareza, os campos se dividem com nitidez. Só não vê quem não quer. Nós continuamos católicos. Com a graça de Deus combatemos o bom combate e guardamos a Fé.”